sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Onde estão as flores?

Quando olhou para o quadro em branco sentiu um calafrio que lhe subiu pela espinha e terminou provocando um renitente tinnnnnnnn no seu cérebro.
– Que ano! - Que ano meu Deus!
Aquele quadro em branco representava bem o que ela queria sentir... Nada!
- Era isso que deveríamos sentir quando assim quiséssemos. Porque não existia um botão escrito on embutido em nosso corpo e ao tocá-lo pudéssemos esquecer tudo? O inferno é mesmo nossa consciência.
Sentada ali, naquele chão da sala, na qual tinha acabado de dar sua última aula do semestre .
Seus alunos foram embora para as férias. E ela ficou de pé, ao menos por alguns minutos. Mas, ao apagar o quadro... Ah, maldito quadro!
Foi ele quem fez todo o estrago.
– Como alguém resume sua vida a dar aulas? Sou uma boa professora, aliás, a melhor professora de Literatura Clássica do Estado, sou independente, dona do meu nariz. Sou muito bem sucedida.
Parecia uma solilóquia empunhando essas palavras como a uma espada afiada. Se levantando do chão, limpando a saia bege. Falando e falando, tentando se convencer de que tudo estava bem. Começou a recolher seus papéis e canetas, enxugando uma lágrima que teimava em cair. Organizou um pouco a sala, as cadeiras estavam todas fora do lugar devido à euforia dos alunos com o término das aulas. Estavam com pressa, pressa em ver o sol, de começar a tão esperada folga e liberdade.
Saindo da sala ela cruza com alguns colegas professores, um deles o Cícero que trazia pela mão uma criança sorridente cuja semelhança não negava ser sua filha. Não se atreveu a perguntar. Não queria puxar assunto. Tudo que desejava era resolver a burocracia de um fim de ano letivo e ir correndo para o estacionamento da faculdade. De preferência com um saco de papel na cabeça para que ninguém a reconhecesse e viesse chateá-la com sorrisos e despedidas.
– Meu Deus! Estou fugindo de sorrisos, no que eu me tornei? Tudo ajudado por essa TPM, só pode ser, ou então é esse clima nostálgico de fim de ano. Preciso anotar esses pensamentos para contar ao Heitor, ele sim vai me entender.
Heitor era seu psicólogo e amigo, também depois de todos esses anos de convivência quem não se tornaria amigo dela?
Heitor a achava engraçada, volta e meia ele tentava lhe dar alta, mas passada duas semanas, lá estava ela de volta com dois parafusos a menos, daí o que ele podia fazer? Era tentar consertar. Sabendo que tudo aquilo não tinha precedentes na psicologia, teria certamente que inventar uma nova terminologia médica para ela. Talvez algo como: fobia de se envolver. Estava quase deixando de ser ateu e entregando a cura dela para Deus, no mais era ouvi-la, lhe dar generosas doses de doces, aconselhá-la e esperar a próxima crise.
- Aí que droga! E essa caneta que não funciona? Nem anotar meus pensamentos eu posso! Como vou dizer ao Heitor? Preciso escrever para lembrar. Droga, droga!
Ela batia a caneta com força na mesa. Tão entretida com sua fúria, não percebeu a chegada do professor Nunes na secretaria. Ele estendia uma caneta vermelha há alguns minutos em sua direção e sorria vendo seu acesso de raiva. Por fim resolveu dar uma risadinha para que ela o notasse.
– Oi Nunes, brigada. Nem te vi entrar.
– Percebi isso, bom fique com a caneta é presente de Natal. Boas férias Doutora.
– Boas férias Nunes.
Só aceitou a caneta porque realmente precisava, há algum tempo passou a não gostar do Nunes. O seu jeito a incomodava, sempre convidando para voltar a freqüentar o Centro Espírita o qual ele fazia parte. Naquele momento ela estava avessa a qualquer tipo de espiritualização. Naquele momento. Pois suas inconstâncias a fizeram gnóstica, cética, espírita, católica, cética, ateia e cética novamente. Ela não entendia como algo Maior podia ajudá-la, nenhum santo, chá ou incenso podiam preenchê-la. Então melhor não freqüentar nenhum lugar.
-Do jeito que ando iria espalhar a incredulidade nos frequentadores do Centro. Melhor não, melhor era ficar em casa com minha novela, meus cd’s, depois um filminho de comedia pra descontrair.
Tudo anotado, notas dadas, agora é só sair à francesa. Apenas alguns metros até o estacionamento, depois casa.
– Ah, como quero minha casa e um banho! Pena que não tenho um saco de papel. Espero que a Tânia não venha me perguntar de novo se quero participar da confraternização dos professores. Todo mundo se alfineta o ano inteiro, pra depois se confraternizar. Não mesmo! Não tenho paciência. Que Deus me ajude a chegar até o carro.
Colou no rosto o melhor sorriso, do tipo: estou feliz, boas férias, mas não me parem pra bater papo. E chegou sã e salva ao estacionamento. Deixou a faculdade sem olhar para trás, sabia que teria que voltar em breve para reuniões. Então não tinha motivos para um adeus cinematográfico. Colocou um som no carro que a deixasse a vontade para chorar uma dor tão insana que não valia a pena ficar guardada. Oito quilômetros até em casa. Eram tantas as lágrimas que os lencinhos de papel que tinha no carro não deram conta. Decidiu parar na loja de conveniências para comprar mais e alguma coisa para comer. No corre-corre com o término do semestre não teve tempo de parar no supermercado esses dias. Estacionou ao lado do posto de gasolina e foi direto pegar os lencinhos, abriu o pacote, tirou alguns, secou o rosto e pôs o resto na cestinha. Pegou uns pacotes de batata fritas, uma caixinha de leite e uns chocolates. Chegou em casa com a cabeça estourando de dor, sempre que chorava ficava com dor de cabeça. Talvez por esse motivo evitasse tanto chorar.
Seu apartamento tinha uma decoração discreta e simples. Por mais que tentasse nunca conseguia deixá-lo a sua cara. Então resolveu se concentrar na decoração de seu quarto, mas mesmo tentando muito arrumá-lo ele ficou com cara de escritório bagunçado. Artélia, sua empregada, também tentou arrumar o quarto e a casa, mas depois de um tempo desistiu com o incentivo da patroa. Coitada da Artélia tinha que agüentar cada coisa. Uma hora não se podia fazer sobremesas na casa, era muito açúcar para uma quase diabética, outra hora nada de café, pois lhe tirava o sono, outra hora ela perguntava aonde estavam as sobremesas e o café. Mas Artélia já estava acostumada.
O apartamento era pouco visitado. É obvio que quando sua mãe aparecia sozinha e sem avisar, ela discretamente fazia sinais para Artélia lhe lembrar de um compromisso fictício muito antes combinado para essas emergências. Pois essa visita sempre enveredava por assuntos monótonos e invasivos. Quando não conseguia convencê-la de que realmente precisava sair, imaginava a mãe falando em slow motion para se divertir e o tempo passar sem se aborrecer. Ao final de cada conversa, a mãe sempre abria uma sessão de conselhos, o último era sempre: você precisa de um marido e filhos, por isso anda estressada e amarga.
– Certo mãe, eu vou tentar arrumar alguém, quem sabe um bem parecido com o seu pra me trair bastante até que morra em cima de mim depois de vinte nove anos juntos como aconteceu com você e isso me custe três anos de terapia caríssima.
E essa conversa terminava sempre gritada no corredor enquanto sua mãe entrava no elevador, com o aparelho auditivo previamente desligado para não ouvir mais desaforos. Depois tudo sobrava para a pobre Artélia.
– Por que você deixou a dona Margô entrar?
- Porque é sua mãe?!!
-Me faça lembrar de inventar algo e não recebê-la, por favor.
– A senhora sempre diz isso e no fim das contas sempre a recebe, eu é que não me meto mais.
– Eu e meu coração mole Artélia. Eu e meu coração mole.
Tirando de lado as visitas de Dona Margô a vida na casa era muito tranqüila. Artélia já estava lá há nove anos, conhecia todos os costumes e maus costumes da patroa. E como a conhecia bem, fingiu não ver suas lágrimas e disfarçou puxando assunto.
–Como foi hoje na faculdade?
– Normal.
– Pega esse leite e põe chocolate, vou tomar um banho e já volto.
Deixou as compras na cozinha e correu desesperadamente para o chuveiro. Embaixo dele podia chorar se contorcer que ninguém veria. O banheiro era seu refúgio. Tinha o hábito de se trancar nele antes de desabar.
E o choro de hoje era intenso e amargurado.
Choro de fim de ano, recheado com a cara da filha do Cícero, a distância que mantinha de sua mãe, o caixão do pai, o marido e os negócios bem-sucedidos da irmã que a impedia de estar mais perto dela. O amor de Heitor que ela rejeitava há anos...
E o sonoro não, dentro da frase: “não podemos mais continuar com isso” da professora de Ciências Sociais que ainda ecoavam em seus ouvidos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Avesso


Acordei e fui procurar meu cachecol.
A viagem já estava marcada e os meus ajudantes a caminho.
Cinco em ponto.
Quando passaram sobre minha cabeça agarrei-me a eles e depois de algum tempo de viagem respirei fundo e me joguei.
Cai num rio bem pequeno.
Nolu fazia parte do meu roteiro há tempos. Lugar exótico, segundo outros exploradores. Havia poucos arquivos sobre o lugar e isso me instigou ainda mais para as explorações. Essa lacuna eu queria ser o primeiro a preencher. Sai de dentro do rio com os sapatos molhados, apanhei na bolsa lápis, papel e gravador. Mal dei os primeiros passos logo cheguei a uma pequena casa, nada convencional. Não era muito parecida com nossas habitações. O senhor que lá encontrei vivia suspenso numa casa que mais parecia uma crisálida. Não questionei, já havia me acostumado às novidades. Desde que me tornei um explorador me surpreender e ficar calado, observando, era minha especialidade. Ao me ver, ele desceu por uma espécie de teia e veio logo me interrogando. Expliquei que meu objetivo ali era apenas conhecer e catalogar o lugar. Ele ficou curioso sobre outras civilizações e me convidou para um chá. Explicava-me que ele próprio plantava e colhia, buscava água e fazia o fogo. Perguntei se todos os Nuluandos dominavam o fogo, pois era obtido de uma forma bastante curiosa. O senhor me mostrou duas esferas prateadas que ao se chocarem produziam faíscas que permaneciam acesas como um pequeno fogaréu até serem separadas novamente. Era assim que ele cozinhava. Pareceu-me óbvio que lá não haveria nenhuma espécie de combustível fóssil, ou algum outro artefato inflamável a não ser as tais esferas pratas as quais ele chamava de Dádiva. Não poderiam ter outro nome, pois se não fosse elas o que proporcionaria o fogo tão elementar para sua sobrevivência? Em minhas outras viagens conheci alguns lugares que haviam superado essa necessidade do fogo, mas em Nolu as Dádivas ainda faziam toda a diferença. Aceitei o chá e comi algo parecido com nossa maça. Perguntei sobre os demais moradores e a resposta se mostrou triste e cheia de mistérios. O homem me explicou que os outros moradores eram carrancudos, maus, egoístas e pretensiosos. Contou-me que quando ia pegar água, às vezes demorava cerca de quatro horas. Eu não entendi, já que havia percorrido a distância entre o rio e sua casa em poucos segundos. Resolvi não questionar e ouvir suas historias. O morador não utilizava a água do rio em que cai para o uso doméstico, aquele riozinho fornecia apenas água de beber. Então para ter água em sua casa tinha que ir ao outro extremo do lugar, porém era tão pequeno que continuei cheio de perguntas. Ele me explicou que andava bastante e demorava tanto porque sempre tinha que desviar das outras pessoas. Não gostava delas. Disse-me que agiam esquisito e tinham umas caras de dar medo. Ora eram agressivas ora eram hipócritas, além de tudo cochichavam quando o viam. Definitivamente não as tolerava e preferia evitá-las. Algumas vezes, me confessou, voltava para casa sem a água necessária de tão desgastante que era ter que ver todas aquelas pessoas. Por isso achava que eu não tinha muito que ver por lá. Nolu até então para mim se resumia a esses dois rios bem pequenos, aos cultivos de poucas frutas que o senhor mantinha e a sua casa.
Eu estava disposto a explorar, a conhecer esses tais carrancudos e quem sabe entendê-los. Minha curiosidade, assim como a de todos que passavam por Nolu e não entravam era principalmente do porquê o pequeno planeta brilhar tanto de longe. Eram tantas as luzes lá de cima que eu precisava saber o que era. Alguns estudos anteriores comprovaram que a luz era mais forte no horário da incidência dos raios de sol sobre o planeta. Pensei na possibilidade de Dádivas gigantes em algum lugar do planetinha, que ao se tocarem faiscavam e refletiam para todo o Universo. Agradeci a gentileza e fui à exploração, depois de alguns metros percorridos, percebi que não havia mais nada para ver. Não falei com nenhum morador, não haviam dádivas gigantes e eu não tinha mais nada o que fazer ali. Pedi aos meus ajudantes que viessem me buscar e lamentei por meu mais novo amigo. Nolu tinha apenas um morador. Todo o mistério se resumia aos vários espelhos espalhados por toda a parte.